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Celebrada pelos democratas – aqueles que lutaram contra a ditadura militar iniciada em 1964 e formalmente finalizada com a eleição indireta de Tancredo Neves a presidente da República, em 1985, pelo Colégio Eleitoral instalado no Congresso Nacional –, a palavra anistia volta à cena política do País. Porém, com sinais trocados. Hoje, quem repudia um novo e distorcido conceito de anistia são os mesmos democratas que celebraram a promulgação da Lei da Anistia, em 1979, permitindo o retorno dos exilados políticos e “perdão” a todos os opositores “que tiveram seus direitos políticos suspensos” pela ditadura.
A Lei da Anistia de 79 também contemplava “os punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares”, por serem opositores do arbitrário regime militar. No questionável contexto de conciliação entre as forças democráticas e os generais – para tornar possível dar um passo à frente na redemocratização –, torturadores e assassinos de coturno foram igualmente anistiados. Esse erro histórico, como se sabe, alimentou uma cultura perniciosa de impunidade geral, e contribuiu para manter acesa a chama do golpismo em nome de mais uma ditadura civil-militar.
O termo anistia agora serve, sofisticamente, a Jair Bolsonaro, sua família e todos os bolsonaristas, além da extrema-direita, que intensifica seu levantar de bandeiras para anular os supostos crimes cometidos pelo ex-presidente e todos já condenados por crimes relacionados à tentativa de golpe. Na verdade, a preocupação dos políticos da extrema-direita não passa pela situação dos que estão presos, foragidos e processados pela depredação da Praça dos Três Poderes, no infame 8 de janeiro de 2023. Evidentemente, sob o pretexto de pedir clemência para os “tiozinhos”, o que se quer é livrar Bolsonaro.
“Mito” e blitzkrieg
Dessa forma, o “mito” estaria mais próximo de conseguir anular sua condição de inelegibilidade e, em consequência, disputar a Presidência da República no ano que vem. Em outra frente, a que articula a derrubada da Lei da Ficha Limpa na Câmara dos Deputados – tese classificada como inconstitucional por importantes juristas –, a estratégia é compor uma espécie de blitzkrieg. Portanto, trata-se de ações simultâneas visando impedir o julgamento de Bolsonaro, que pode ser preso ainda neste ano, após sentenciado no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF).
No caso do ex-presidente, é notório que pesam contra ele acusações de crimes de abolição violenta do estado democrático de direito, golpe de estado e organização criminosa. Por tudo isso, ele foi indiciado pela Polícia Federal (PF), que concluiu seu relatório encaminhado ao STF. Além de tais supostos delitos, a PF indiciou o Jair por organização criminosa nos inquéritos das joias sauditas e da fraude do cartão de vacina da Covid-19. Com a proposta de “anistia” defendida pelos extremistas de direita, alvoroçados com a chegada de Trump ao poder nos EUA, o ex-presidente passaria a estar livre, leve e solto.
Para o jurista Marlon Reis, relator da Lei da Ficha Limpa, “o instituto da anistia não pode ser imaginado senão para remover obstáculos legais, judiciais, a pessoas perseguidas, as vítimas”. Prossegue Reis, para o canal ICL Notícias: “a anistia em relação à ditadura militar só era compreensível em relação àqueles que foram condenados arbitrariamente em tribunais de exceções criados durante a ditadura”. Ele sustenta que a anistia de 79 não era “para depois apadrinhar e melhorar a situação, salvaguardar aqueles que praticaram os crimes”. E é exatamente para isso que estrilam Bolsonaro e sua entourage.